Deisy Cota



Vida Não Obstante

Eu não sei como ela era antes do nosso primeiro encontro, em outubro de 2009. Não sei como ela falava, que palavras mais usava, como era a cadência da sua boca e os gestos das mãos; não sei como era seu jeito de andar ou se suas pernas eram mais fortes do que são hoje. Talvez seus cabelos fossem curtos e vermelhos. Talvez não tivesse Hendrix nem Bia, seus gatos negros. Não sei dizer. Há um ano eu a conheci como ela ainda é hoje, e, de lá pra cá, tudo continuou sendo igual a antes. Ou quase.

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Ela segue usando um carrinho elétrico para ir ao banco, à depilação, à farmácia e a outros lugares mais distantes de seu apartamento no centro da capital paulista – em casa ela continua caminhando por si, apoiando-se nas paredes e móveis para compensar o titubeio dos músculos. Como há um ano, ela continua pronunciando as palavras pausadamente em um português perfeito e seus cabelos ainda são longos e negríssimos e as pernas bem desenhadas. Seu namorado é o Nei, como há um ano. Em cima da mesa da sala ainda repousa a mesma vasilha de plástico com tampa laranja acondicionando um bloco de maconha prensada que vi pela primeira vez em outubro de 2009. Naquela primeira ocasião, julguei que a maconha fosse um pedaço bem servido de bolo até ela pegar o bloco compacto e tirar uma lasca dele, moê-la, prensá-la num papel de seda e acendê-la.

Embora quase nada tenha mudado nesses doze meses – os blocos de maconha se renovam a cada 30 dias, é verdade – Deisy, em outubro de 2009, não era mãe e não pensava nunca em sê-lo. Há uns seis meses, contudo, tive notícias de que estava grávida. Grávida?, perguntei à fonte da notícia.

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Mas... e a esclerose? Não sei... – responderam. Em agosto de 2010 fui visitar Deisy – não sei por que, mas havia colocado o tema da gravidez num arquivo mental de assuntos a confirmar, e tinha abstraído o fato até o momento em que toquei a campainha e ela respondeu lá de dentro: entra! Abri a porta, pedi licença e entrei. Hendrix, o gato negro que tem os dentes inferiores pra fora, me recebeu ronronando sentado no carrinho elétrico da dona. Fiz um cafuné rápido, contornei a mesa da sala e cheguei à entrada do quarto. Fiquei diante da porta, muda, olhando-a sentada no meio da cama, as pernas cruzadas e um bebê de olhos fechados mamando em seu peito esquerdo. Samuel Lemmy, seu filho com Nei, tinha só um mês de vida e já havia mudado por completo o rumo da história que Deisy vivia e que eu pensava em narrar.

Metamorfose

Saber como Deisy Cota era antes do diagnóstico de esclerose múltipla, recebido em 2004 por ela, aos 20 anos, sem dúvida daria pistas sobre a pessoa na qual se transformou com a chegada da enfermidade. A esclerose, doença degenerativa que afeta músculos, coordenação motora, fala, visão e que abate psicologicamente, pode evoluir de forma rápida ou demorada. Quando Deisy foi internada pela primeira vez, há seis anos, ela teve uma piora brusca dos sintomas que vinha sentindo de leve há alguns anos sem saber o que era. Quando deu entrada no Hospital São Paulo, já quase não andava e nem enxergava. Ficou internada uma semana e recebeu o diagnóstico no feriado de 7 de setembro. Não tem cura, o médico disse, mas tem tratamento. Eu vou poder continuar bebendo vinho? – Deisy quis saber. Vinhólatra, aquela era sua principal preocupação. Vieram outras depois. Como continuar trabalhando e estudando se os pés formigavam horrivelmente, o corpo doía e o mínimo equilíbrio faltava? Não dava. Largou o trabalho como webdesigner numa editora e o curso técnico

naquela mesma área. Largou o vinho porque teria que bebê-lo moderadamente e isso ela se negava a fazer. Depois vieram o carrinho elétrico, a quimioterapia, as injeções intravenosas de corticoide e alguns surtos, nos quais sintomas antigos se agravavam e outros novos apareciam; veio a mudança para um apartamento de um cômodo no centro de São Paulo onde foi morar em 2006 acompanhada dos gatos Hendrix, Bia e da vasilha de maconha. A erva é seu alívio quase imediato para as terríveis sensações físicas que a esclerose lhe causa. Bastam dois ou três tragos e os sintomas são amenizados.

Por causa da denúncia de um vizinho, a polícia paulista quase tomou o pé de remédio que Deisy cultivava em um vaso na sala do apartamento. Ela abriu a porta e recebeu os agentes com gentileza, serviu-lhes café e respondeu a todas as perguntas que lhe faziam enquanto ela terminava de enrolar o baseado que começara a bolar pouco antes de a visita aparecer sem aviso. Deisy só precisou mostrar alguns artigos científicos que tinha guardados e uns sites sobre esclerose múltipla para provar aos policiais que a maconha, no caso dela,

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é unguento. Eles foram embora, mas o pé de remédio ficou – coloca a planta num lugar menos visível – foi o único pedido que lhe fizeram.

A chegada do filho não planejado e improvável provocou uma alteração ainda maior que a esclerose, o carrinho, a quimio, os corticoides, a maconha e a vida no limite entre sensações físicas desencontradas. Deisy resume assim sua metamorfose: esclerose múltipla é uma das doenças com maior índice de suicídio entre seus portadores. A pessoa desiste de viver, mas eu gerei uma vida.

Ela não é uma mulher naif e nem do otimismo fácil. É bem mais pessimista e acha a raça humana fria e egoísta. Mas Samuel, pela fragilidade inerente, deu a Deisy uma terceira via. Eu tenho diante de mim um ser humano completamente indefeso e que depende de mim pra comer. Ou você aprende a amar, ou deixa morrer de fome. Deisy deixou de preparar caipirinhas e hoje prepara mamadeiras; de repente começou a colocar coisas felpudas no quarto pra deixá-lo mais confortável e a oferecer álcool gel para as visitas que queiram tocar

seu filho; entre as encomendas de cremes e shampoos da Natura que compra e revende, ela inclui perfume e sabonete para o filho. Deisy retomou a produção de um roteiro de filme de terror trash que pretende oferecer ao cine- asta Zé do Caixão e que ficara estacionado durante a gestação. Entre cenas sangrentas e bizarras que sua cabeça fabrica, ela encontra tempo e candura para esquentar a mama- deira do filho e dar de comer a ele. Deisy substituiu o metal pesado que gosta de ouvir pelo CD Beatles para crianças, que Samuel gosta de ouvir – quando muito, ela põe Frank Zappa de fundo para ajudar a embalar o sono do filho. Sempre agradecido, Samuel Lemmy adormece.

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Vida não obstante

O heavy metal não tem a ver com a maternidade. A esclerose múltipla também não. Mas a vida de Deisy é não obstante desde que ela era menina. Não obstante a vigilância da mãe, Deisy saiu para acampar pela primeira vez quando não tinha 15 anos ainda. Contou à mãe que estava fazendo um trabalho de escola na casa de uma amiga. O trabalho nunca foi entregue, a casa era uma barraca de camping e as muriçocas de Bertioga, litoral paulista, sabem mais sobre a aventura adolescente de Deisy do que sua própria família. Não obstante a pouca idade, ela também frequentava shows de jazz no Centro Cultural São Paulo, vivia cercada de gente mais velha e nem precisava mostrar RG falso para entrar em casas noturnas do centro da cidade – sorria para os seguranças, levava-os na conversa e ganhava a pista escura, as bebidas e o rock pesado quando bem queria. Em 2000 ou 2001, ela trabalhava num sebo da rua 7 de abril, também no centro, e pediu demissão – não obstante precisasse do emprego – para fugir às investidas do chefe cafajeste. Após 15 minutos de desemprego, Deisy já entrava em uma loja de discos

num endereço próximo ao sebo e pedia trabalho. Isso foi numa sexta-feira. Na segunda seguinte estava empregada outra vez.

No caso de Samuel, não obstante o desejo de Deisy de nunca ter filhos – mesmo antes de receber o diagnóstico da esclerose –, ela deu à luz sua maternidade no dia 5 de julho de 2010. Samuel foi esperto, ela diz. Escondeu-se no ventre da mãe e ali ficou, imóvel e imper- ceptível até o quarto mês de gestação. Não engordei e quase não tive enjoo. Da primeira vez que enjoei, foi num café da manhã. Comi e vomitei em seguida. No dia seguinte, a mesma coisa aconteceu. Comprei um teste de gravidez com a certeza de que não estava grávida. Fiz e deu positivo. Comprei outro. Positivo de novo. Fiz o exame de sangue e constou que eu já estava no quarto mês de gravidez. Ele foi esperto. Se eu soubesse antes que estava grávida, com certeza ele não estaria aqui.

E agora que está, como fica? É tudo estranho – ela responde, com o olhar posto no filho que não para de sugar a mamadeira nem enquanto dorme. A existência de Samuel demorou para encaixar-se na engrenagem

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da vida de Deisy. Primeiro ele surgiu como um positivo num exame de urina, depois em um de sangue; em seguida, mostrou-se pela barriga crescida da mãe e pela remissão dos sintomas da doença durante a gestação – Deisy pôde suspender a quimio e o corticoide intravenoso até o primeiro mês de vida do filho. Mas esses sinais ainda não eram Samuel com rosto, cheiro, voz e sentido. Ele então nasceu, e tinha olhos, mãos, pés e uma boca faminta. Deisy começou a amamentar, a trocar fraldas, a dar banhos em alguém que não ela e a decifrar códigos – choros e grunhidos – com os quais nunca tivera contato. Até pouco tempo atrás ela ainda ficava chocada quando alguém lhe presenteava com roupas de bebê. Pra quê? Pra quem? Hã? São para o Samuel, Deisy. Ah, sim, meu filho. Por instinto, ela entendeu o que era isso de meu filho. A consciência da maternidade está mais sedimentada hoje, e Deisy entende melhor o sentido inoculado em Samuel. Acho que agora eu posso mostrar aos fracos que eles não são tão fracos assim. Deisy transformou-se em outra(s) desde o nosso primeiro encontro, há um ano.

Samuel acorda e chora no berço. Deisy levanta da cama e procura um alento para o filho, o CD Pink Floyd para crianças. Não encontra – está emprestado para outra mãe com filho recém-nascido. Ela aperta play no aparelho de som e volta a ouvir Beatles para crianças por respeito e amor à tranquilidade de Samuel.

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