Cris Bierrenbach



Denso

Em todos os lugares do mundo, menos no Haiti, ninguém ouviu nada. Mas quando as pessoas de todos os lugares do mundo, menos as do Haiti, acordaram no dia 13 de janeiro de 2010 e olharam as capas dos jornais nas bancas, viram fotos da capital haitiana, Porto Príncipe, em pedaços. Então entenderam que naquele lugar, um dia antes, o mundo havia acabado de repente sob os sons de um terremoto – estrondos, estouros e gritos. Mas as fotos do Haiti nos jornais estavam em silêncio.

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Cris Bierrenbach tirou a foto que apareceu na capa do jornal Folha de S. Paulo naquele dia. E a foto de Cris tinha som, um ruído incômodo que só ela ouviu quando apontou a câmera para os escombros de pessoas e pedras e começou a registrar as imagens. Era invasivo de sua parte, ela diz, era agressivo. Se sentia mal. Mas tinha a câmera na mão e, ato contínuo, começou a fotografar o que via sem entender seu papel de testemunha passiva – o que poderia contra os efeitos do tremor? – diante de pessoas que iam tombando em um canto e outro. A terra ainda tremia e Cris não deveria estar em Porto Príncipe, mas sim no Cabo Haitiano, região ao norte da capital, trabalhando com um grupo de estudantes e um professor de antropologia da Universidade de Campinas. Mas ela estava. Por acaso. Hora e lugar certos ao avesso.

Há uma densidade em Cris Bierrenbach que não a deixa falar de coisas para as quais não tem a palavra exata. Prefere passar a pergunta e esperar a próxima em silêncio. E se assim é com a palavra, tanto mais com a fotografia, extensão física e pública daquilo que sente primeiro nos olhos que a justificam.

Cris Bierrenbach

Não é preciosismo. Mas no seu pensamento intenso – às vezes um ritornelo que a angustia – os desdobramentos daquilo em que acredita não podem ser levianos. A densidade em Cris a faz ser rigorosa até com as razões que movem ou paralisam seu indicador no botão que dispara a câmera fotográfica.

Extremos

As fotos daquele primeiro dia foram enviadas ao jornal e publicadas. Pediram-lhe mais, dos dias seguintes, das notícias de saques, agressões e violência generalizada que Cris nunca viu – era a oferta espetacular da imprensa ao mundo. Porto Príncipe, em Porto Príncipe, era um. Mas nas imagens era outro. Cris não queria correr atrás da foto bombástica de primeira página. Queria olhar e entender amplamente como os haitianos estavam vivendo aquilo e, a partir dali, ajudá-los. O mal estar persistia – aquele do dedo no botão da máquina porque ela estava ali no momento propício. Para Cris, era uma barreira do tamanho de um desastre natural. Mas daquela vez não seria como as vezes em que ela se esforçou para superar suas próprias barreiras. Há cinco anos acontece de expor-se a si mesma em performances com fins de arte e, secretamente (no bastidor da inconsciência), com fins de superação de uma timidez arraigada. Chegara ao ponto de construir uma parede de velcro e pregar-se nela com uma roupa, também de velcro, para que os espectadores a manipulassem ao seu gosto e criatividade durante a performance

numa galeria em São Paulo. Às vezes ela pensa por que cargas d’águas fez isso e continua fazendo? E a resposta ela sabe que é porque, com tudo o que tem dificuldade, aplica a radicalidade como remédio. O meio do caminho não lhe serve nas questões essenciais.

Mas não seria assim no Haiti desfeito. O mal estar que sentia ao apontar a câmera para o que via nas ruas não precisava ser superado com uma sequência de fotos dramáticas porque não tinha a ver com um defeito dela, mas bem o contrário. Tinha a ver com a densidade que lhe dá rigor seletivo. Cris se recusou a fotografar o que os veículos do mundo inteiro esperavam da tragédia.

Cris Bierrenbach

Admiração

Cris Bierrenbach admira quem consegue pensar coletivamente e tem projetos para ajudar os outros. No centro da capital paulista, onde vive, ela se enreda na malha de meninos zumbizados pelo crack que parecem crescer com as árvores, com os prédios e reformas do metrô. Não tem resposta para eles. Nem soluções. E, de novo, como no Haiti, ela se sente impotente.

A coletividade no seu trabalho de fotógrafa praticamente não existe. É solitário, embora reflita nos olhos de uma multidão que ela desconhece – como a multidão que parou em pé em frente às bancas de jornais do Brasil na manhã do dia 13 de janeiro de 2010 para ver de longe o que ela viu de perto em Porto Príncipe. Às vezes acontece de Cris presenciar o momento exato em que suas fotos escapam de seu domínio e viram públicas, propriedade da subjetividade de quem vê. Na loja de fotografia e revelação rápida onde certa vez levou algumas imagens para ampliar, as três atendentes se reuniram para comentar seu trabalho: você é mesmo uma artista, né? É você que tem todas essas ideias?

Quando começou a trabalhar como fotojornalista na Folha de S. Paulo, em 1989, seu assombro era chegar ao laboratório onde as suas fotos e a dos colegas eram reveladas e ver que seu trabalho estava ali, sobre a mesa, sendo discutido, criticado e apontado pelos outros. A timidez arraigada aflorava mais aí. Cris desconhece o caminho que suas fotos percorrem dentro do espectador até virarem sentimento, razão e verbo. E ela se admira com isso também.

Cris Bierrenbach

Roupas vazias

No Haiti em ruínas, as ideias de Cris, e mesmo a solitude do seu trabalho, haviam sido suspensas – estava acompanhada das oito pessoas com as quais viajara, e arriscar- -se tentando retirar pessoas no meio dos escombros era arriscar o grupo e malograr a sorte que tiveram de não terem sido atingidos pelo terremoto. A terra não parava de tremer, a água ia acabando, a comida também, o carro já não tinha mais combustível e ninguém sabia que outros abalos poderiam surgir. As praças de Porto Príncipe viraram grandes acampamentos, e foi em um deles que Cris Bierrenbach encontrou a síntese da capital desfeita e, por extensão, dos seus sentimentos desencontrados.

Na Champs de Mars, praça central da cidade, um enorme amontoado de roupas abandonadas no asfalto dizia que os corpos sobravam ali. Uma roupa esvaziada é como um corpo deixado, resume Cris. Estava posta a questão do abandono e do esquecimento. Para a questão não havia resposta, mas uma reflexão longa e silenciosa.

O rigor seletivo que a densidade dá a Cris Bierrenbach finalmente suspendeu a chancela para ela trabalhar. Cris ligou a câmera fotográfica e registrou as não-vidas dentro das roupas vazias.

Caminho

Em meados de 2010, Cris Bierrenbach ganhou o prêmio nacional de fotografia Marc Ferrez com as fotos das roupas no Haiti. Ganhar um prêmio, ela diz, é como alguém lhe assegurar que você não está tão equivocado com seu trabalho. Com a exposição fotográfica, outra vez ela se mostra ao crivo e gosto do público sem nunca se sentir completamente à vontade com isso. De novo não saberá o caminho preciso que as imagens percorrem dentro de cada pessoa para virar uma avaliação subjetiva. Mas cada espectador saberá o que o atrai nas imagens, e elas terão força sobre ele, e ele se lembrará delas por muito tempo, assim como Cris, que para além das imagens registradas pela câmera, conhece o som e a densidade de cada foto.

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