Conflitos, fluxos e ambiguidades
São virtualmente infinitos os pontos de partida possíveis para se fazer a leitura de um território, especialmente quando ele se situa em uma região historicamente tão complexa e de camadas tão ambíguas como é a zona central de São Paulo, onde convivem construções de épocas distantes e pessoas das mais variadas origens.
No parecer sobre o processo de tombamento do bairro dos Campos Elíseos, iniciado pelo Condephaat em 1986, o geógrafo Aziz Ab’Sáber escreveu que “todas as experiências na direção dessas ‘leituras’ implicam um esforço de percepção de fatos que dizem respeito, de modo integrado e indivisível, ao sítio, à planta, aos volumes construídos e às gerações de homens que se sucederam no interior das moradias e nos fluxos humanos das ruas e praças.”
O que propomos nesta exposição é agregar, de forma bastante desprendida, mais uma camada ao caleidoscópio de olhares que se sedimentam sobre essa geografia: a camada do conflito. Como ponto de partida, escolhemos uma fotografia feita por Gustavo Prugner em 1924: um cartão postal cuja edição original aqui exposta foi gentilmente cedida pelo Instituto Moreira Salles. A imagem mostra dois homens, um negro e um branco, que conversam diante de uma casa despedaçada, com parte da estrutura à mostra. O imóvel, como lemos na legenda do autor, sofreu o “efeito de uma bomba” na Revolução de 5 de julho. A casa atingida pela explosão localizava-se, diz Prugner, na Rua Helvetia, número 2.
Sobre o que falam os dois homens de uma geração há muito sucedida, podemos apenas especular, mas é bastante provável que discutissem o então recente levante tenentista em São Paulo e a reação desmedida das tropas que se mantiveram fiéis ao governo. Em resposta à “mazorca” que tomou os quartéis e atacou o Palácio dos Campos Elíseos, sede da administração estadual, o governo paulista empreendeu um “bombardeio terrificante” que atingiu não apenas o epicentro da revolta, mas a cidade inteira, despejando sobre a população civil granadas, canhões e ataques aéreos. Em uma frase, Carlos de Campos, então Presidente do Estado (cargo que corresponde hoje ao de governador), resumiu os motivos por trás da operação: “São Paulo prefere ver destruída sua formosa capital antes de destruída a legalidade no Brasil.”
Talvez a camada do conflito, como a pensamos aqui, represente uma leitura possível daqueles fluxos humanos citados por Ab’Sáber. Não à toa, fluxo é também o termo que dá nome à concentração fluida de pessoas e mercadorias, parte delas ilícitas, que hoje movimenta o entorno da antiga casa despedaçada, cujo terreno abriga um estacionamento, símbolo contraditório do dinamismo paulistano. Um território cujo apelido pejorativo e estigmatizante — cracolândia — disfarça a complexidade das relações e dos conflitos que se entrelaçam no tempo e no espaço, confinando-as a uma leitura presumidamente unívoca.
No início do século XX, uma bomba explodiu na Rua Helvetia, número 2. Vinte e três dias depois, os jornais comemoravam a “vitória da legalidade” e o “sufoco da revolução”. Passaram-se quase cem anos. Sob a justificativa de conter os fluxos e manter vigente a legalidade, muitas outras bombas, reais e simbólicas, têm explodido sobre aquele epicentro, atingindo principalmente os mais vulneráveis.
Sob Ataque parte de estratégias que colocam em contato registros fotojornalísticos contemporâneos e imagens documentais vindas de diferentes acervos históricos, como os do Instituto Moreira Salles, da Fundação Energia e Saneamento e da própria Casa da Imagem, espaço público e central que recebe essa exposição. De outro lado, o trabalho recorre ao artifício, à ignição inventiva sobre o território, propondo um olhar ambíguo, dialético sobre essas explosões que, ao longo do tempo, moldaram e moldam não apenas a geografia do território, mas também as suas dinâmicas históricas e sociais.
Coletivo Garapa