Dissonante, vago. Em maio de 2013, contratamos um pesquisador para realizar uma peregrinação pelo Brasil em busca de vestígios da Coluna Prestes. Dois meses depois, recebemos pelo correio uma caixa contendo um diário, fotografias e objetos. O remetente: B.Q., ou Breno Queiroz, geógrafo paulistano de 26 anos. A nós coube a interpretação desse material e a composição da narrativa que se segue.

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Não dormi. O relógio digital marca dez graus. A neblina é densa, e é impossível enxergar mais do que cem metros à frente. Não fossem os poucos passageiros do ônibus que, despertados no meio do sono, descem do carro como zumbis, as ruas estariam desertas às três horas de uma noite de inverno.





Meu primeiro dia foi quase inútil. Não sei se o sono que sinto é real ou apenas um tipo de fuga, mesmo que semiconsciente. Aluguei um carro e percorri estradas da região. Não encontrei nada. O povo fala de uma ponte de ferro, uma estação de trem, mas ninguém sabe dizer aonde devo ir. É como se o tempo tivesse apagado tanto os rastros físicos quanto a memória das pessoas. Uma confissão: me sinto incapaz de começar, sem saber por onde. Visitei o Memorial Coluna Prestes, o monumento desenhado pelo Niemeyer e o Museu Marechal Rondon. Curioso encontrar os dois lados da batalha em um raio tão pequeno. Busquei no mapa por uma Rua Luís Carlos Prestes e encontrei uma ruela de paralelepípedos com menos de cem metros de extensão.





Dia quatro, Restaurante Fino Sabor. Segunda parada: uma ponte contruída pelo batalhão ferroviário em 1923. Ela ainda guarda a cicatriz do maçarico que marcou a data da construção. Vimos as picadas abertas na época e que hoje são estradas de chão batido. Terra vermelha, que fica nos sapatos por dias e dias. Passagem rápida pela estação de Comandaí, onde os insurgentes se reuniam pensando nos caminhos que a Coluna trilharia anos depois.





Dia seis, Hotel Iguaçu. Fronteira arbitrária. Dionísio Cerqueira na verdade são três: uma em Santa Catarina (a própria Dionísio), outra no Paraná (Barracão) e outra na Argentina (Bernardo de Irigoyen). Dá pra atravessar de uma para a outra a pé sem dificuldade ou burocracia. Curiosidade: entre SC e PR, sabe-se que está em um ou outro pelo formato dos postes de iluminação (redondos em SC, quadrados no PR). Argentina e Brasil se desnudam pelas placas dos carros. Há algo a se aprender com essa permeabilidade. Não é à toa que os desertores da Coluna usaram a região como rota de fuga pra Argentina. Uma placa na aduana informa as distâncias até Santa Fé, Salta, Mendoza, Santiago e Antofagasta.





Dia seis, Restaurante El Sheriff. Caminho pela linha que divide os países, ora equilibrando uma metade da planta do pé em cada território, ora perfurando a divisa em cada passo. A não ser pela fronteira tripla, que lhe dá alguma movimentação diária, Dionísio Cerqueira é mais uma cidade pacata do interior. Na TV do hotel, me divido entre os jogos da Copa das Confederações e as notícias dos protestos pelo país. Milhões nas ruas e aqui não vejo sequer uma faixa de indignação. No almoço ouvi um homem que tentava “agitar alguma coisa” na praça de pedágio “pra aproveitar a onda”. Não sei se seus colegas aderiram, e não vi notícia de manifestação no jornal. Frio danado, 6 graus ontem à noite. Começo a gostar do chimarrão, talvez por isso. Amanhã busco Maria Preta e Separação. Minha referência é um mapa que encontrei na internet. Perguntando, devo achar. Espero.





Mais um campo de batalha tomado pela soja. Começo a ver essas plantações como um grande e uniforme tapete que foi encobrindo a memória com o passar do tempo. No fundo do vale, uma cruz de madeira é identificada por uma placa. O povo diz que a cruz é real, que foi colocada ali pelas tropas, que as vítimas foram enterradas em uma vala comum. E há mesmo um entalhe, já quase apagado, marcando o ano de 1925. Mas ninguém nunca escavou pra saber se há algum cadáver. A cruz, dizem, foi feita de guajuvira-preta. Recolhi um pedaço de madeira que estava solto.





Dia oito, Restaurante Medieval. Colhi uma amostra de terra no campo da batalha de Separação. Pensei em depositar a terra no final da viagem, em San Matias. Mais uma vez, não sei bem o motivo, mas imagino que seria uma maneira de simbolizar o fim do caminho. A pátria é a poeira embaixo dos meus pés.





Dia nove, Trento Pizzaria. Desço do carro pra comprar um par de meias e aproveito para perguntar sobre a lápide do Tenente Araújo. Na Secretaria de Cultura, duas salas guardam um acervo de objetos históricos. Encontrei alguns projéteis de metralhadoras que, segundo me disseram, são resquícios da passagem da Coluna, mas o objeto que mais me chamou a atenção foi o “arquivo de madeira”, um armário com porta de vidro contendo pequenas chapas retangulares de vários tipos de madeira encontrados na região. Entre elas, a guajuvira-preta. Pesquisando, encontrei uma referência a essa árvore no catálogo “Flora Brasiliensis”, editado no século 19, e descobri que existe um exemplar no Jardin Botanique Exotique de Menton, na França. Terá sido algum dos pesquisadores de von Martius o responsável por levar as mudas para lá?





No meio do antigo campo de batalha há um cemitério, mas um morador me disse que é de uma família local, não tem relação com o confronto. Há mesmo jazigos mais antigos do que a batalha. O que terão pensado os combatentes quando o encontraram?





Dia treze, Hotel e Restaurante O Bistecão. Peguei carona com um caminhoneiro até Mundo Novo, depois um ônibus intermunicipal até Iguatemi. Paisagem quase imutável. Converso pouco com Antônio, o motorista. Mais ouço do que falo. Todo caminhoneiro tem alguém à sua espera. Maria é o seu nome. Ele pergunta se tenho um alguém. Digo que não sei. Pergunta o que tanto escrevo e lhe digo que é uma carta. Para quem? Alguém, respondo.





Dia quinze, Rodoviária de Campo Grande. Não consegui parar aqui. Talvez por efeito da solidão prolongada, a cidade grande se torna demasiadamente opressiva.





Dia dezesseis, Hotel Paiaguás. Pelas minhas contas, já percorri 2.535 quilômetros em um caminho torto entre Porto Alegre e Santa Rita do Araguaia. Levei 15 dias. Começo a sentir mais fortes os efeitos do isolamento, da falta de interação com pessoas próximas. Passo a maior parte dos dias em silêncio, e quase todos os diálogos que tenho são meramente funcionais (caminhos, sugestões de hotéis e restaurantes etc.). No último trecho, desde Iguatemi, não consegui pensar em trabalho. Abri a mala hoje e fui tomado pela náusea. Na transitoriedade da viagem, a mala é o refúgio da identidade. Por alguns segundos, fiquei parado, catatônico, olhando para as roupas e objetos que escolhi como companhia pra viagem. As roupas tinham o cheiro de casa. Abriu-se um pequeno portal para a saudade. Vi a camisa que ganhei de F. em meu último aniversário e lembrei que usava ela no dia em que ela saiu de casa batendo a porta. Não nos vimos mais. Vi o barbeador que ganhei dos meus pais e que não usava desde que parti. Aparei a barba e me obriguei a ver minha cara se transformar no espelho por doze minutos. Escrevo isso para você.





Decidi alugar um carro. Dois minutos atrás, quando observava o salão, havia além de mim três pessoas que ocupavam sozinhas mesas quadradas ao lado das quais sobravam cadeiras vazias. Duas permanecem. O rapaz que sentava de frente para mim, à minha direita, divertia-se com seu jantar. Sentado em uma mesa escura ao lado de um mapa da região, um homem jovem lê um guia de viagem. De vez em quando, levanta a cabeça e percorre com os olhos o salão, detendo-se fixamente em algum ponto por alguns segundos antes de voltar ao livro. Logo à minha frente, de costas para mim, uma mulher balança os cabelos de mechas douradas a cada movimento de seu braço em direção à cesta de pães.





Dia dezoito, ônibus Expresso São Luiz, Santa Rita do Araguaia - Goiânia. Acordei para ver que uma leve camada de neblina encobria a paisagem (ou será fumaça?). Por todos os lados, a vastidão dos campos, pintados de um bege esverdeado, terreno propício a testes nucleares e experiências biológicas suspeitas. O vento lá fora levanta a poeira e faz confundirem-se céu e terra. O horizonte torna-se uma mistura difusa de amarelo e azul. São raros os povoados que se vê pela estrada. Ainda que esteja tudo cercado, não dá pra ver animais. A não ser alguns pássaros que planam de asas abertas e ajudam a compor o cenário. Quase nada de água, apenas arbustos, areia, galhos secos, a cerca, postes de eletricidade, a estrada.





Quando eu era criança, me perguntava se haveria algum lugar no mundo onde nenhum ser humano colocou os pés. Pensava que seria incrível ser a primeira pessoa a pisar em um lugar. E então imaginava que só eu havia pisado naquele canto do nosso quintal, junto ao pé de jabuticaba. Meus pés e aquele canto estavam, assim, ligados para sempre. Hoje, viajando de carro por uma estrada que corta pastagens infindáveis, lembro daquele pedaço de terra. Vejo o horizonte enevoado pela fumaça e me pergunto se, em algum ponto além daquela linha, haverá ainda um canto de terra pra pisar pela primeira vez. Fui até o morro do Moleque. Sonhei com o diabo montado num porco-espinho. Só que o porco-espinho era eu.





Dia dezenove, Hotel Estrela. Paisagem ocre, cerrado. Um manto uniforme à primeira vista que revela seus contrastes ao observador mais atento. Chegar a Palmas é surpreendente. Dá pra sentir o calor pelos olhos. Palmas não existia na época da Coluna. Goiás Velho era a capital de Goiás, e Porto Nacional a "capital do Norte". Prestes e a Coluna passaram por aqui sem imaginar que seis décadas depois seria erguida a capital do estado do Tocantins. Um tabuleiro de xadrez visto antes que todas as peças tenham sido colocadas. Há uma incompletude na cidade, uma escassez de pessoas para a amplidão das avenidas. Dá a impressão de que ainda não foi povoada como planejado. A melhor sensação é a de saber-se a tão poucos quilômetros da imensidão do deserto austral e do mistério que o envolve.





Dia vinte e um, Hotel Mosaico. A divisa entre Tocantins e Bahia é marcada pela linha de um chapadão que parece não ter fim. A terra plana dessa parte da Bahia despenca em um imenso buraco no lado tocantinense, e os campos de soja baianos chegam até a fronteira do precipício. Lourenço fala da passagem da Coluna pela Pedra da Divisa, que marca a divisa entre os dois estados. Descubro que a pedra ainda existe, sendo chamada hoje de Pedra da Baliza. Depois de dirigir por quase cem quilômetros no meio de plantações que se estendem para além do horizonte, chego a uma estrada secundária que corta o cerrado. O solo é tão arenoso que quase atolo o carro por diversas vezes. Dou meia volta. A não ser pela estrada, não avisto qualquer sinal de ocupação humana. Estou certamente no ponto mais virgem da viagem até agora. Perder-me aqui seria fatal. O sol queima a pele e a paisagem. Recolhi um punhado de areia.





Dia vinte e três, Praça Leopoldo de Bulhões. O único som a rasgar o silêncio de Natividade é o de um tambor que acompanha um grupo de fiéis do Divino Espírito Santo. Não mais do que dez homens, alguns instrumentos e uma bandeira vermelha com inscrições douradas.





Dia quarenta e oito, Hotel Kaypira. A cerca de 200 km a Oeste de Cáceres está Porto Esperidião. Fica à beira do Rio Jaurú. Parei aqui por acaso noite passada, e escolhi o lugar pra passar alguns dias. O caminho me traz ao último suspiro da Coluna. Prestes marchou em retirada para San Matias por essa rota, gastando mais de três semanas pra percorrer o trecho com uma tropa que ia se desmantelando a cada légua. Era estação de chuva, começo do ano, e o Pantanal engolia esse finalzinho de cerrado. É um trecho de desespero e desolação. Me identifico pessoalmente com ele. O caminho hoje é seco, aqui e ali vejo uma queimada. É julho. A secura está também dentro. Secura e solidão.





Dia quarenta e nove, margem do Rio Jauru. No hay nada en San Matías, me disse o taxista boliviano logo na fronteira. Cruzei o Jauru procurando por histórias daquele tempo. Ao Norte da MT-388 há uma grande propriedade de criação de gado. Um morador me diz que essa propriedade incorporou a antiga fazenda Jacutinga há uns 3 anos. Jacutinga também é o nome do porto pelo qual Prestes cruzou o Jauru pela última vez, a caminho da Bolívia. O porto não existe mais, mas a história persiste nas palavras. Foi aqui também, na outra margem do rio, que aconteceu a última batalha do comandante e sua tropa de estropiados. Nessa batalha, dizem, morreram trinta. No caminho atropelei uma ave. Pouco depois encontrei uma cobra (jararaca?) esfacelada na beira da rodovia. Estrada é morte.



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Concepção e execução: Garapa

Créditos das reproduções:
Página 7: Marechal Oscar de Barros Falcão - A Revolução de 5 de Julho de 1924 (A Componente Militar)
Páginas 11 e 55: Claude Lévi-Strauss - Tristes Trópicos
Páginas 26, 29 e 49: Lourenço Moreira Lima - A Coluna Prestes - Marchas e Combates
Página 34: Luciana Murari - Brasil, Ficção Geográfica - Ciência e Nacionalidade no País d'Os Sertões
Página 46: Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

Imagens adicionais: Claudio Reinke

Tratamento de imagens: Enoá

Agradecimentos:
Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Santo Antonio do Sudoeste - PR
Secretaria Municipal de Cultura de Porto Nacional - TO
Museu Municipal de Dianópolis - TO

Desenvolvimento web: Erica Watanabe

Realização:
Garapa Funarte

Este projeto foi contemplado com o XII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2012

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