A Margem

“rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”
Guimarães Rosa

“Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?…”
Mário de Andrade

No escorregar das águas sobre a terra, a margem, essa linha conceitual, se esforça em demarcar separações. Em vão, mal sabe: que há tempos de estiagem e de tormenta, altas e baixas marés; que há o balançar mesmo das ondas, arrancando aqui nacos de terra, plantas, para depositá-los milhas acolá; há o ser homem, em seu intento contínuo de domesticar, em concreto e palavras (represar, retificar, eclusar), o que é natural. E há, sobretudo, o tempo – a história.

Quantos rios cabem em um nome? – a pergunta nos laçou em meio aos caminhos percorridos. O Tietê do cidadão urbanícola da capital é um, hoje escuro, pesado e fétido, símbolo do desenvolvimento sem arreios, mas outro é o rio de vastas e claras águas que serve de peixes e lazer o cidadão ribeirinho de Itapura, onde entrega suas águas ao Paraná. Assim tal qual, o rio que tanto espanto provocou em aventureiros de eras longínquas, cada qual com a tecnologia que lhe era pertinente – canoas, mapas e instrumentos de navegação – desperta vertigens outras quando, hoje, percorrem as suas margens os viajantes contemporâneos, munidos de automóvel, GPS, celular e outras traquitanas. Unem os diferentes Tietês um nome indígena, séculos de histórias e, quiçá, moléculas d’água.

Rio-arquivo
Outra pergunta nos perseguiu enquanto buscávamos as margens do Tietê desde a nascente em Salesópolis até a foz em Itapura: quem será, pois, esse explorador contemporâneo?, já avançado mais de década adentro no século XXI, despido da inocência histórica que provia a vertigem aos antepassados, sabedor do fato de que não fará mais descobertas, mas construções e interpretações. Assim, conscientes de que só a experiência e o encontro com o rio haveriam de estimular as reflexões que buscávamos, nos lançamos à submersão e assumimos como cerne do trabalho a construção imaginária desse narrador que busca desvendar – descobrir, inventar – as camadas de significado sedimentadas ao longo do rio.

Viajante, explorador, turista, arqueólogo. Busca na paisagem vestígios, camadas latentes de memória visíveis apenas a um olhar atento e inquieto. Relê a história a partir da experiência e do espanto. Carrega consigo ferramentas de interpretação, apetrechos tecnológicos. Busca nos antigos diários as chaves para construir seu modo de ver. Submerge e escava estórias nos relatos da população ribeirinha, nas bibliotecas e arquivos locais. Compõe um quebra-cabeças a partir da lembrança, ela também vertiginosa como a margem, como o tempo.

Processo
Inspirados por essas reflexões e pelo legado dos viajantes de eras passadas – Teotônio José Juzarte, Hercules Florence, John Mawe e Auguste de Saint-Hilaire, entre outros – partimos em direção ao rio na busca por nossos próprios espantos. Após um primeiro estudo dos relatos, especialmente da Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829, de Florence, e do Diário da Navegação, de Juzarte, dividimos o rio em seis segmentos, cada um ligado a uma cidade-base: Salesópolis, São Paulo, Itu, Barra Bonita, Penápolis e Itapura, e iniciamos uma série de viagens a fim de explorar cada um dos trechos escolhidos.

Travestidos de pseudocientistas, artistas-viajantes, lançamos mão de uma série de experimentos e interpretações sensoriais em busca de conexões simbólicas: uma escala cromática tenta organizar as diferentes tonalidades da água ao longo do rio, gráficos e mapas localizam, sem obrigação de precisão, cachoeiras existentes e extintas, erros de percurso, momentos de espanto. Em Itu, um assassinato relatado por Hércules Florence em sua estada há quase duzentos anos mostra-se latente em um crime reportado pelo jornal local. Em Barbosa, um condomínio às margens do antigo salto de Avanhandava, hoje submerso, abriga réplicas em fibra de vidro dos animais encontrados pelos antigos exploradores. Cada viagem trouxe, por bem dizer, diferentes leituras e reflexões, e o acúmulo de impressões e experiências acabou por direcionar o olhar a um ponto de convergência: a visão do rio como uma imensa biblioteca cujas dimensões simbólicas tendem ao infinito.

Dizem os relatos que, nas profundezas de uma certa curva do Tietê abaixo do salto de Avanhandava, vive o terrível monstro de Pirataraca, uma serpente gigante disposta a emborcar as canoas dos navegantes incrédulos. Sair em busca do monstro é, portanto, um intento fadado ao fracasso – resultará ou na morte ou no vazio. A margem, como o monstro, será sempre uma busca, estará sempre onde menos esperamos.

Ao largo do curso do rio caminha o curso da rodovia. Sob a água das represas construídas no seu leito repousam cidades, usinas, saltos antes intransponíveis. Entre todas essas camadas, acima e abaixo da superfície, a jusante e a montante, misturam-se hábitos, linguagem, imagens. O que é o rio, então, senão a soma de todos os percursos já traçados sobre ele, e de todos os que ainda serão traçados? O que é o tempo senão a soma de todos os tempos?

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