Um rio são muitos rios

Para se contar a história, ou pelo menos algumas histórias de um rio, é preciso incorporar o balanço, a fluidez, o insondável, e saber que entre uma margem e outra as águas não correm para uma única direção: elas deslizam entre fatos e fábulas, lugares atemporais e vestígios, e por uma intrincada justaposição de tempos e espaços.

Geografia mutante por excelência, o rio é um dos principais símbolos da ideia de transformação permanente. O filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso professava a doutrina de que “tudo flui, tudo está em permanente movimento”. Para ele, o devir, a eterna renovação, se dava pelo agenciamento dos contrários. É dele a propagada frase “o mesmo homem não pode atravessar o mesmo rio duas vezes, porque o homem de ontem não é o mesmo homem, nem o rio de ontem é o mesmo de hoje”. Um rio são muitos rios.

A guerra dos opostos, entre as margens de um rio, reside na fluidez inexorável das suas águas em contraponto às margens – aparentemente – estáticas, mas também na oposição entre a história oficial, cartográfica e documentada, e as memórias que as pessoas guardam, envoltas em atmosferas ficcionais, narrativas afetivas e contos fantásticos. História movente, também em reconstrução ininterrupta.

Do embate entre o movimento do rio – e, por extensão, da vida – e aquilo que se imagina fixo, histórico, surge uma espécie de vertigem espaço-temporal, que é a tônica inequívoca de todo rio.

Conscientes dessa potencialidade de dobras simbólicas, históricas e labirínticas contida entre as duas margens e ao longo dos mais de 1.100 quilômetros de extensão do rio Tietê, no estado de São Paulo, os fotógrafos do coletivo Garapa se lançaram em uma série de expedições, refazendo o percurso dos navegantes que partiram em missões exploratórias pelo rio nos séculos 18 e 19. Foram guiados, também, pelo faro de pesquisadores: encontraram acervos, ouviram histórias de moradores, se deixaram levar sabiamente por pistas falsas, posto que elas também são fontes ricas a denotar o rio como espaço mais simbólico que geográfico.

Essa exposição pretende, assim, ser uma devolução para o público de parte do material recolhido nessas incursões; propõe, sobretudo, uma reflexão sobre como constituir narrativas a partir de um referente que desliza e não se deixa apreender de forma objetiva. Trata-se de um ensaio tateante, que busca dar contornos ao seu objeto, ciente de que a imprecisão é a regra, posto que o rio segue se transformando à medida que se revela apenas parcialmente.

Os trabalhos aqui expostos, portanto, dialogam frontalmente com a nova forma de pensar o documentarismo por meio da fotografia. O desnudamento da trama fotográfica, empreendida há décadas por diversos teóricos, obrigou a uma reavaliação, no cerne do fotodocumentarismo, sobre as noções conservadoras de verdade e realidade, por exemplo.

Com os amadores fotografando cada vez mais, e utilizando diversas ferramentas que incrementam esteticamente suas imagens, a capacidade que a imagem tem de criar mundos paralelos à realidade, mais do que simplesmente certificar a existência do visível, tem ficado cada vez mais notória para o grande público. Essa massificação da fotografia seria, portanto, uma das responsáveis por legitimar, enfim, as teorias que sinalizavam para o poder de ficcionalização da fotografia.

Essa percepção levou o fotojornalismo a uma crise ainda insolúvel. O coletivo Garapa é formado por três fotógrafos egressos de redações de jornais e revistas. Ao se juntarem e criarem um núcleo de produção de trabalhos em plataformas multimídia, incorporaram também uma atitude interdisciplinar ao pensar a elaboração de suas reportagens, documentários e trabalhos autorais, inclusive cruzando todas essas classificações e embaralhando as noções entre trabalho comercial, autoral, conceitual, jornalístico e artístico.

Essa atitude libertária baliza as ações que levaram à pesquisa e produção do projeto A MARGEM, assim como já havia ocorrido nos bem-sucedidos projetos MULHERES CENTRAIS e MORAR. Modalidades renovadas de narrativas surgem a partir da expertise do fotojornalismo que agora é pensada à luz de pesquisas bem alinhadas sobre arte contemporânea, noções de antropologia visual, referências à história da arte, um olho aguçado a perceber as mudanças comportamentais da sociedade e uma atualização constante sobre as tecnologias multimídia que, mais que ferramentas, potencializam conceitualmente os cruzamentos entre as tantas áreas de interesse do coletivo.

O resultado dessa empreitada é um relato que, já distante da tradição impositiva e unidirecional do fotojornalismo clássico, por exemplo, percebe as questões objetivas e históricas do referente, mas em nenhum momento despreza a dialética, a dúvida e, sobretudo, a subjetividade e a polissemia dos múltiplos pontos de vista, inerente a qualquer tema. É preciso representar um objeto de estudo dentro da complexidade que lhe é nata e não domesticá-lo por um ponto de vista limitador e ideologicamente conformado. A aventura da representação torna-se, então, muito mais complexa. É preciso ter olhos para as suas idiossincrasias, suas contradições, sua impositividade como signo, mas também para a poética impalpável que flutua e reverbera em cada pessoa de forma distinta.

Alinhar tantas questões é exercício de muitos embates. Esse é o dilema diário, fruto de longas discussões do coletivo, mas também a razão de existência dele. Afinal, o grupo deve saber como incorporar as dissonâncias tantas que correm nesse rio, sabendo que as margens que o contêm devem reconstituir a experiência dessa jornada pelas águas da representação de forma intensa para os novos viajantes que agora se aventuram pelos seus próprios rios. Afinal, há sempre um novo rio a nossa espera.

Eder Chiodetto

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